sexta-feira, 4 de abril de 2008

Uma conspiração de estúpidos

Acabei-o agora mesmo. Um dos prazeres da leitura também é prolongar a hora do almoço e ficar na mesa vazia a ler as últimas páginas de um livro.

Este livro estava há anos na minha mesa-de-cabeceira. Comecei a lê-lo várias vezes e não passei das primeiras páginas. A descrição das personagens e do ambiente não me prendia e acabava por adiar a leitura. No entanto, a história do autor, que escreveu dois livros (este é o segundo) e que se suicidou aos 32 anos sem nunca vê-los publicados e o prefácio escrito por Walter Percy, responsável pela sua publicação, não me permitiram abandoná-lo e ainda bem.

Aqui fica parte do prefácio que, embora longo, explica muito melhor que eu porque é que o devem ler.

Talvez a melhor maneira de apresentar este romance – que à terceira leitura me fascinou ainda mais que à primeira – seja contar como tive conhecimento dele. Em 1976, estava a dar aulas em Loyola, comecei a receber telefonemas de uma senhora que não conhecia. O que ela me propunha era um absurdo. (...) Fora o filho, já falecido, que escrevera um romance completo no início dos anos 60, um grande romance e ela queria que eu o lesse. (...)

Mas a senhora era persistente e, não sei como, dei com ela no meu gabinete a entregar-me pesado manuscrito. (...) Restava-me a esperança de que, ao ler umas quantas páginas, elas fossem tão más que, em consciência, não me sentisse obrigado a ler mais. (...)

Neste caso continuei a ler. Mais e mais. Primeiro, com a sensação mais nítida de que o romance não era suficientemente mau para desistir, depois, com um certo interesse, em seguida, com um entusiasmo crescente e, por fim, com incredulidade: de facto, não era possível que fosse tão bom. Resistirei à tentação de dizer o que primeiro me fez abrir a boca de espanto, sorrir, soltar uma gargalhada e abanar a cabeça, maravilhado. (...)

Se qualquer forma, aqui é Ignatius Reilly, sem progenitores em qualquer literatura que eu conheça – um excêntrico desalinhado, um misto do louco Oliver Hardy, do gordo Don Quixote e do perverso Tomás de Aquino -, que se sente violentamente revoltado com toda a era moderna, deitado na cama, com a sua camisa de noite de flanela, num quarto das traseiras de Constatinople Street, em Nova Orleães, e que, entre gigantescos ataques de flatulência e de arrotos, enche dúzias de blocos de apontamentos Big Chief de invectivas.

A mãe pensa que ele precisa de trabalhar. Ele vai, tem uma sucessão de empregos. Cada emprego transforma-se rapidamente numa aventura lunática, num desastre rotundo; todavia, cada uma tem a sua lógica misteriosa, à maneira de Don Quixote.

A namorada, Myrna Minkoff, de Bronx, acha que ele precisa de sexo. O que acontece entre Ignatius e Myrna não tem paralelo com nada do que conheço acerca de histórias entre rapazes e raparigas. (...)

Mas a maior proeza de Toole é o próprio Ignatius Reilly, intelectual, ideólogo, vadio, mandrião, glutão, que deveria repelir o leitor com as suas bebedeiras descomunais, o desprezo estrondoso e a guerra solitária com toda a gente – Freud, homossexuais, heterossexuais, protestantes e todos os diversos excessos dos tempos modernos. (...)
Hesito em utilizar o termo comédia – embora de trate de comédia – porque implica apenas um livro engraçado, e este romance é muito mais do que isso. (...)

É também um romance triste. Nunca sabemos exactamente donde vem a tristeza: se da tragédia implícita nas grandes fúrias gasosas e nas aventuras lunáticas de Ignatius ou da tragédia que perpassa o próprio livro. (...)

10 comentários:

. disse...

Mas gostaste? Luz de Estrelas

LP disse...

Sim, gostei!

Tive várias fases como o Walter Percy. A fase em que o livro me suscitava alguma curiosidade mas que não me prendia, a fase em que a curiosidade era maior que a antipatia pelas personagens, a fase em que só me ria e, por fim, a fase em que só queria continuar a ler.

. disse...

Hummmm, também fiquei curiosa, confesso! :D Luz

LP disse...

Só mais uma coisa. Parece-me que o livro perde bastante com a tradução. Como não percebo nada, não sei se é por estar mal feita ou se é apenas porque este se baseia muito no dialecto/pronúncia de Nova Orleães e isto não se traduz.

. disse...

Lp, é aquela questão do lost in translation, né? Pode estragar trocadilhos e afins. Mas pronto. Assim seja. Beijito. Luz

Cool Mum disse...

Lp é curioso escreveres isso, porque a transcrição do prefácio já me tinha feito pensar que a tradução não devia ser lá grande coisa...

Pode ser que compre no ebay ;)

Repolha disse...

Ahhhh - ainda bem que ainda não desisti dele. Exactamente pela mesma razão que tu.

Está aqui mesmo ao meu lado, pendurado na pág. 121 desde 2001 (fui confirmar por onde andaria o marcador e encontrei uma receita médica datada :P - q vergonha).

Curiosamente nem sei o que aconteceu para o parar de ler porque estava a gostar, mas tenho esperanças ainda de lhe ver o fundo ao tacho. Lá terei é de voltar ao início...

ps: o título é divinal!

Cristina disse...

Mais uma sugestão a anotar!

Bjos

Cristina

Mariah disse...

Peço desculpa por me intrometer neste clube mas não resisto. Desde que o meu filho nasceu que passei de um livro por semana para... um por ano, mas tenho esperança que a estatística mude em breve. Li este livro há uns cinco anos e gostei muito. Não me custou a "entrar", talvez incentivada pelo meu marido, que o leu primeiro, não me recordo. Gostei tanto ao ponto de o querer partilhar, tendo sido "a prenda" para amigos e familiares (ainda hoje é um dos presentes de eleição). Achei o livro muito cinematográfico (não é comum isso acontecer), acho que bem aproveitado dava um excelente filme. Ri imenso com o livro, mas acheio-o tremendamente triste.
Parabéns por este espaço e se não se importam, vou voltar.

LP disse...

Mariah, é isso mesmo! Este livro dava um excelente filme.