Chego atrasada, um 'hábito' que ganhei já depois de crescida, e que, por mais que me aplique, não há meio de perder. Deve ter a ver com a minha inenarrável mania de me meter em mais coisas do que aquelas que as 24 horas dos dias e os sete dias da semana tornam humanamente possível. Mas este não podia falhar.
Porque amo a palavra, falada e escrita.
Porque amo os livros, as suas páginas, letras, capas e contracapas. A sua textura e toque, cor, peso e densidade. Arrumá-los, desarrumá-los, empilhá-los, desfolhá-los, lê-los. Lembra-me aquela fabulosa canção do Caetano - não há outra até hoje que me tire mais do sério:
"Os livros são objectos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarros
Domá-los, cultivá-los em aquários
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou o que é muito pior por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas"
Estão a ouvi-la?
Mas os livros acompanham-me desde que me lembro de mim. Nasci, cresci no meio deles. Às pilhas, aos montes. Imaginei um dia viver numa casa onde estivessem arrumados. Onde forrassem paredes, organizados por tons, tamanhos, autores, assuntos, numa sinfonia de lombadas apetitosas e luzidias. Sonhei mudar-me para uma livraria onde pudesse dar livre curso aos meus desejos de leitura. Ler quatro, cinco ao mesmo tempo, conforme a hora do dia e a inclinação do momento. Devorá-los como fazia quando miúda, até ao cair da noite, em que a minha mãe me ia encontrar na mais completa escuridão, já com a visão raio x a trespassar as trevas, sem que me tivesse apercebido sequer da crescente dificuldade em decifrar as linhas de texto. Não fazer mais nada. Ser leitora a tempo inteiro. Fazer disso a minha profissão. Mal sabia eu então que tal existia...
Depois, mudei. Ou melhor, "os dias que correm" fizeram-no por mim. Acumulo as leituras em atraso. Estou semanas, meses, para os terminar. Adormeço sobre eles, de luz acesa - eu, que me escondia debaixo dos lençóis e cobertores, de lanterna em punho, porque não podia esperar pelo dia seguinte para lhe conhecer o desfecho. E dou por mim, mesmo quando poderia 'despachá-los', a adiar-lhe - à leitura - o momento derradeiro, porque é triste a última página, mesmo quando o final é feliz. Porque os livros, quando nos prendem, transportam-nos para outras paragens de onde não apetece voltar. Pelo menos para já. Porque as suas personagens se tornam parte da nossa vida, e terminar o livro é como perder um amigo. Nunca mais o tornar a ver. Mesmo que decidamos reler, a história continuará a mesma. A personagem ficará naquele estádio, como aquela fotografia de alguém que um dia amámos e que partiu para não mais voltar.
Mas lá estou eu a esticar-me, ainda para mais em tasco colectivo. É que adoro uma pescadinha de rabo na boca. Escrever sobre a escrita, ler sobre a leitura. E seria capaz de passar horas a falar sobre eles. Os livros. De como eles são belos e sedutores. De como me identifiquei com aquela instalação do Centro de Arte Moderna que representava uma espécie de torre de babel de livros feita onde, com jogo de espelhos em cima e em baixo, eles eram multiplicados ad infinitum, numa vertigem assutadora mas irresistível de capas moles e duras alinhadas em intermináveis prateleiras. Ou de como um dia encontrei nas breves dos jornais um faits divers que trazia para a realidade um dos fantasmas da minha família: a história de um nova-iorquino que passara vários dias preso atrás de uma montanha de livros que haviam desmoronado no seu apartamento; o homem só tinha sido encontrado in extremis por um parente preocupado pela sua prolongada ausência....
Mas estou atrasada. O tasco em forma de biblioteca já vai lançado e eu ainda à porta. Vou pôr as letras em dia.
terça-feira, 8 de abril de 2008
Livros
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11 comentários:
saca do relógio de bolso ó coelho branco, atrasada, atrasada...
Lindo!
(o que eu fiquei feliz quando um dia descobri que havia uma profissão de leitor/a)
Estou como a Cool, gosto dessa profissão. Há personagens neste extenso livro que é a blogosfera das quais não gostaria de me despedir. Beijos. Luz
por mim, alonga-te as vezes que quiseres.
que delícia ler-te :)
Descreveste também as minhas imagens de infância. As leituras pela noite de lanterna em punho, a minha mãe a ralhar. Eu lia livros impróprios para a minha idade (li o Holocausto com 7 anos?) às escondidas e detestava quando me davam brinquedos ou roupa, queria era livros. Depois também mudei mas agora estou a tentar por as leituras em dia.
adorei este post
Também adorei entrar naquela estrutura do CAMJAP. Não me importava de ter uma em casa.
Gostei muito da ideia de cada livro ser um amigo.
Como sempre, um belo post!
Bjos
Cristina
Vens sempre a tempo :)
Atrasada, mas em grande estilo. As usual! :)
:)
eu sinto-me sempre deslocada.
adoro ler, mas não sou nenhuma leitora compulsiva como muitas meninas aqui. comecei a ler livros bem cedinho, mas nunca estive de lanterna até às tantas, nem tive a minha mãe a ralhar comigo ;)
gostei de ler. por mim também te podes alongar sempre que quiseres.
Ai q me identifico tanto... fico triste qd acabo um livro... c saudades. Já me afeiçoei aos personagens... é como se fizessem parte da minha vida.
bj*
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